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terça-feira, 10 de julho de 2012

Segera Mission (Março/2012)

Quando estávamos planejando a nossa viagem tive uma linda visão, durante uma meditação, que a missão da minha vida era servir a humanidade, servir com amor, humildade e entrega, assim como uma mãe que serve a sua família. E enquanto minha razão tentava entender como seria isso, meu coração de longe já sabia que só precisaria se entregar, que seria conduzido ao lugar certo, no momento certo com as ferramentas que precisasse.

Um pouco antes de viajar, sentada na cozinha da casa de minha mãe, minha irmã, que estava morando no Quênia, começou a nos contar sobre uma missão que estava apoiando no meio de uma região muito pobre e seca de lá. Ela descrevia a situação da região e as lágrimas escorriam pelos meus olhos, imaginando mulheres e crianças caminhando por quilômetros todos os dias sob um sol escaldante, para pegar água nos rios que ainda não haviam secado, ou para ir a escola, onde muitas vezes faziam sua única refeição diária, podia ver as famílias que passavam fome, porque o solo seco e árido que lhes restou já não produz frutos...

Eu escutava, imaginava e as lágrimas desciam, enquanto meu coração partido de dor com o que escutava, se questionava como ainda existe tamanho sofrimento no mundo. Como permitimos que a ganância e o egoísmo chegassem a tal ponto que alguns sofrem tantas privações a ponto de morrem de fome e sede, enquanto tão poucos são tão privilegiados com todo dinheiro e poder do mundo?

A minha dor foi se transformando no desejo de fazer algo para mudar essa realidade e enquanto nos preparávamos para a viagem, o rostinho das crianças e das mulheres que conheceria não saiam da minha imaginação e nem a pergunta de como poderíamos melhor servi-los no tempo em que estivéssemos lá.

Segera Mission, a missão que minha irmã descrevia, foi uma missão que começou e continua servindo a várias comunidades no Quênia por amor. Há 10 anos, um reverendo americano da igreja batista, Carlton Gleason, quando viu a realidade dessa região resolveu vender tudo o que tinha nos Estados Unidos e começar essa missão para ajudar as comunidades locais, formadas por tribos das etnias Turkana, Samburu e Massai no Centro Norte do Quênia. Tribos que são em sua maioria pastoralistas e não tem acesso a educação, água limpa e cuidados médicos.

De sua entrega nasceu uma clínica médica, única na região, que atende 10.500 pessoas por ano, tratando e prevenindo a desnutrição infantil, distribuindo alimentos para famílias abaixo da linha da miséria, tratando das doenças mais comuns até HIV, acompanhando gestações e promovendo orientações de saúde e planejamento familiar.

E seu sonho continuou crescendo. Logo a missão abriu uma escola e muitas das crianças que não podiam estudar, ou porque as escolas eram poucas e distantes de seus vilarejos, ou porque precisam trabalhar para ajudar as famílias puderam começar, e hoje já são 180 estudantes. Aos poucos, por necessidade, também nasceu um orfanato para crianças que ou perderam seus pais ou não tinham como ser sustentadas por suas famílias, hoje 15 crianças, e mais tarde também um programa de treinamento técnico para mulheres da região, possibilitando fontes de renda alternativas para as famílias.

Quando chegamos lá pudemos sentir o amor e entrega genuínas da equipe para a missão. Fomos muito bem acolhidos por Faith, que desde o início foi o braço direito da missão, mulher guerreira, mãe do orfanato, pregadora da palavra de Deus, cuidadora e anfitriã dos visitantes.

Conhecemos os enfermeiros da clínica e o bonito trabalho que tem feito em orientar e cuidar das famílias, os professores e as crianças que nos receberam de corações abertos e curiosos para entender mais sobre o nosso país, e as crianças que vivem no orfanato que com muita alegria nos fizeram parte de seu dia a dia.

Visitamos alguns dos vilarejos que a missão atende, vimos a miséria, o sofrimento e a fome de muito perto, conhecemos pessoas incríveis, com uma enorme força de vida, muita fé e uma dedicação intensa em sustentar a vida de suas famílias dia após dia.


Fiquei profundamente tocada por tudo isso, e minha perspectiva de vida e de mundo foi mudando completamente, me fazendo mergulhar numa profunda reflexão sobre as consequências, as vezes distantes de nós, as vezes invisíveis a curto prazo, de muitas das decisões que tomamos como humanidade por ganância e inconsciência nos últimos séculos.

O Quênia, como a maior parte dos países Africanos, sofreu um processo de colonização devastador, uma região composta por diferentes tribos, culturas que viviam em harmonia com a natureza por milhares de anos, com muitas riquezas naturais, se transformou num país com muita pobreza, escassez de recursos e conflitos econômicos, políticos e sociais.

Os árabes, os portugueses e os ingleses viram uma terra com muitas oportunidades para explorar, chegaram sem pedir licença, ocuparam seu território, usaram sua força militar para expulsar os nativos de suas terras e escravizar seu trabalho, usaram seu solo fértil para plantar e exportar a colheita, sangraram o ouro de sua terra, devastaram suas florestas, mataram seus animais para comercializar marfim e couro e forçaram o restante da população a procurar trabalho remunerado através da cobrança de impostos sobre suas cabanas, viabilizando assim mão de obra barata para o desenvolvimento econômico da colônia.

Seu território foi delimitado na conferência de Berlim, em 1884, onde líderes Europeus se encontraram para traçar o futuro do continente Africano sem a participação de nenhum de seus líderes, trançando fronteiras de acordo com seus interesses políticos e econômicos, criando países que separaram mais de 177 etnias culturais, misturam etnias pouco compatíveis que geraram muitos conflitos, enquanto criaram alguns países, como o Gabão, que mal conseguiram se constituir como unidades econômicas viáveis. E continuaram a governá-los para serem uma extensão do território Europeu.

No fim, quando os países Africanos conquistaram sua independência, com muita luta, como o Quênia, os governos colonizadores se retiraram, deixando para trás um legado de exploração, um território com uma pequena parte das riquezas naturais que possuía e um povo oprimido por muitas gerações. E as consequências desse processo é muito visível nos vilarejos que visitamos e reforçado tanto pelo governo ditatorial e corrupto, que se instalou desde a independência, quanto pela indústria de ajuda internacional, instalada massivamente no país.

Muito da história Africana não é distante da nossa história Brasileira, mas hoje vivemos destinos diferentes e um dos aspectos que me parece definitivo nessa diferença é: quando ficamos independentes como nação, no Brasil, a maior parte da nossa população nativa já havia sido dizimada e a população que restou era descendente européia, já parte do sistema político-econômico e social que foi implantado no país, assim quando ficamos independentes não foi muito difícil dar continuidade a ele. No entanto na Africa, a independência foi um processo de retorno da nação ao seu povo nativo, após um processo de construção social que foi alienígena a sua cultura, história e modo de vida. Os europeus chegaram, exploraram e trouxeram consigo seu modo de vida, impondo-o aos nativos, tornando-os dependentes desse modo de vida, mas depois partiram e deixaram os nativos a mercê de um sistema político-econômico-social que não lhes pertencia culturalmente, e eles já não mais podiam retornar ao seu modo de vida anterior, e também não conseguiram operar nesse novo sistema.

E considerando tudo isso, tem uma pergunta fundamental que não quer calar. Qual seria um sistema político-econômico-social que nos permitiria viver de uma forma ecologicamente sustentável, economicamente justa e socialmente digna? Muitos buscam respostas para essa pergunta, alguns a ignoram, mas por tudo que tenho visto, o sistema imperialista americano/europeu que vivemos em grande parte do mundo hoje já mostra seus limites e não está mais 'funcionando'. Ele trouxe benefícios e desenvolvimento para alguns, mas trouxe devastações ecológicas, econômicas e sociais para muitos outros. E qual ou quais seriam 'sistemas' que funcionem?

Algumas das comunidades nativas que conhecemos operavam ou ainda operam em harmonia com o ambiente em que vivem, mas na maioria das cidades que passamos, essa harmonia se perdeu e começa a ficar cada vez mais claro a necessidade de mudança em nossa forma de operar. Sem respostas, mas com muitas reflexões e idéias, duas questões tem ficado cada vez mais claras para mim para viabilizar esse processo de mudança: uma é a importância dos adultos, principalmente das mulheres, como chaves no processo de mudança social, pois somos nós quem criamos as futuras gerações na maioria das culturas, e por isso temos uma grande responsabilidade em manter ou mudar a cultura em que vivemos, através de nós mesmos. A outra é a importância das crianças que serão as futuras gerações, e por tanto, além da família, o papel da escola que tem 'educado' nossas crianças.

E em meio a todas essas perguntas e reflexões, estávamos em Seguera Mission, uma das organizações tentando minimizar alguns dos impactos gerados pela colonização no Quênia, através do cuidado com a saúde e educação das famílias de algumas das tribos mais pobres do país.

E seguia com a pergunta de qual seria nossa melhor contribuição, conectando tudo isso?

Mas antes de terminar o pensamento, quando me dei conta, já estava completamente envolvida num trabalho de "empoderamento" das mulheres nas comunidades ao redor de Segera Mission, e a minha irmã, o Thomas e eu nos envolvemos num trabalho para apoiar os professores da escola de Segera, atuando assim em dois pontos críticos para mudança social na região.

Como mulher, fiquei profundamente tocada com as condições das mulheres em grande parte do Leste da Africa, por onde estivemos, e especialmente nas tribos do Quênia, onde poucas são as mulheres que tem o direito de escolha, poucas podem estudar, a minoria escolhe seu marido ou quantos filhos terão, são elas quem sustentam a casa e fazem todo trabalho pesado de manutenção, muitas sofrem violência doméstica, e em muitas tribos as mulheres são circunscizadas ainda meninas.

Minha dor ao testemunhar isso não pôde se calar. O que impede algumas de nós de enxergar o seu valor e lutar por uma vida mais digna e igualitária? O que faz algumas de nós sofrer calada, nos sentir inferiores e abaixar a cabeça? Por que nos ensinaram assim? Por que não estudamos? Por que temos medo? Por que?

Com essas perguntas todas pulsando em mim, quando fomos visitar algumas das tribos, a Faith, sabendo do meu desejo em fortalecer as mulheres, me convidou para puxar conversas nos grupos de mulheres. Fiquei surpresa e sem saber o que fazer ou falar, mas simplesmente me entreguei ao grande presente que me foi apresentado, escutei as mulheres e compartilhei, mais do que minha experiência e o que alguns grupos de mulheres estavam fazendo para endereçar questões semelhantes, compartilhei o amor e a admiração que sentia por elas, a força que a união de um grupo de mulheres tem.

Foram momentos de muita transformação, amor, confiança e entrega para todas nós. Nos emocionamos, em alguns momentos desmontei de tristeza e em outros transbordei de alegria. Juntas vivemos espaços de profunda troca e aprendizado sobre o feminino e sobre nós mesmas. Percebi que acima de tudo, independente de onde nascemos, somos parecidas, vivemos desafios e questões muito semelhantes, por mais que elas tenham roupagens diferentes.


E com os professores tivemos experiências de muita inspiração e esperança também, nos fazia muito sentido estar com eles e compartilhar experiências e seguimos nossa intuição. Escutamos suas percepções sobre a educação das crianças em Segera, refletimos sobre a importância de seus papéis na vida dessas crianças, seus sonhos e os desafios que enfrentam. Algumas questões muito semelhantes as que vivemos no Brasil emergiram, o sistema de ensino no Quênia traz uma educação bastante engessada, herdada da colônia inglesa, uma educação que 'ensina' pela memorização de conhecimento, preparando as crianças para trabalhar num mercado de trabalho nas cidades, que não poderá acolher a todas elas, e é muito distante de suas realidades, e no fim acaba por distanciá-las do trabalho no campo e de outras possibilidades de trabalho que desenvolveriam suas comunidades e o lugar de onde vem seu sustento atual. Além disso a falta de recursos, de formação e ferramentas para fazer diferente pesa muito na auto-estima e na capacidade de fazer algo diferente do estabelecido para esses professores.

Compartilhamos algumas experiências de 'educações' alternativas, focadas nos alunos, no empoderamento das crianças, em fortalecer a autonomia, criatividade e o desenvolvimento de valores. Experiências que começaram com um sonho e poucos indivíduos que acreditaram nele, falamos sobre as nossas inspirações, conversamos sobre as limitações e sobre as possibilidades que nasciam da união desses professores por um sonho comum e como juntos eles eram mais fortes para realizar seus sonhos.

As soluções não são simples, não sei o que de fato pudemos contribuir para 'empoderar' essas mulheres e professores e o impacto que isso terá ao longo dos anos nas comunidades. E talvez nunca saberemos. Mas o que realmente importa foi o que pudemos viver juntos, a pequenina semente que plantamos, a transformação que cada um de nós viveu nessa jornada.

Saí de Segera com muito mais do que pude oferecer, jamais esquecerei o sorriso maroto no rostinho das crianças, a gratidão no olhar das mulheres que conheci, o grande coração da guerreira Faith que tão bem nos recebeu, e o sonho dos professores, que dedicam seu trabalho para cada uma das crianças que lá estão.

E isso tudo me mostrou, ainda mais, que quando nos entregamos de coração para servir ao próximo, somos simplesmente um canal para levar aquilo que é necessário, no momento em que é preciso, não controlamos nada, e é a nossa entrega, dedicação e amor que se multiplicam nos corações daqueles que as recebem e mais ainda em nossos.

Com amor,

Narjara

 

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Monte Sinai - A jornada e não o destino

Há algumas semanas estivemos na península do Sinai, no Egito. Um lugar mágico, cortado por montanhas rochosas e regado pelo mar vermelho, compondo uma paisagem exótica e inesquecível.

Mergulhamos nas águas verde-azuladas do mar vermelho, descobrindo a vida colorida que reside em suas entranhas e a tranquilidade que habita o silêncio do profundo oceano. Desfrutamos da gentileza dos habitantes de uma pequena cidade na costa, Dahab, e fomos desvendar os mistérios do Monte Sinai, que há milênios atrai peregrinos e curiosos do mundo todo, para visitar o lugar sagrado onde Moisés recebeu as leis de Deus, enquanto conduzia a tribo de Israel pelo deserto do Egito para a terra prometida.

Essa foi uma travessia que durou quarenta anos, quarenta anos de completa entrega ao desconhecido, fé em Deus e muitos desafios físicos que causaram a morte de toda a geração de escravos que saiu do Egito e nunca chegou a terra prometida, mas que permitiu que seus descendentes que nasceram livres, fundassem uma nova nação livre

Estudiosos não tem certeza se foi essa montanha, mas por milênios esse lugar recebe peregrinos que depositam sua fé, esperança, seu amor e gratidão aqui, fazendo desse lugar para lá de especial, um espaço de cura incrível e de reconexão com o Divino que existe em cada um de nós.

Quando chegamos, eu não imaginava o que me esperava. Pensei que fossemos simplesmente fazer uma trilha e desfrutar do pôr-do-sol em cima da montanha sagrada, mas foi só começar a caminhada que essa força espiritual tomou conta de mim e um intenso processo de purificação começou a acontecer.

Quando me dei conta disso, coloquei minha intenção em fazer uma caminhada de purificação e desapego. Eu acredito, assim como algumas linhas espirituais, que quando colocamos energia e esforço para alcançar um objetivo ou uma intenção, ele se concretiza e foi isso o que fiz.

A cada passo que dava, entregava minha dor, a cada degrau que subia deixava ir minhas inseguranças, a cada inspiração me conectava com Deus, me abrindo para receber suas bençãos de fé e confiança, que precisava para seguir caminhando.

Durante a caminhada me dei conta que estava projetando meu centro e minha referência para fora de mim, como fiz durante muito tempo da minha vida, colocando minha felicidade dependente de fatores e pessoas externos.

Tive acesso ao sentimento de eterna falta que esse deslocamento de centro e referência geravam, fazendo com que muitas vezes me sentisse menos, e causando a ilusão de que o reconhecimento externo poderia preencher esse vazio; o que deslocava de mim a possibilidade de minha própria completude e felicidade, e me tornava dependente do reconhecimento e do amor externos para que me amasse e me reconhecesse.

Como manter meu eixo se o ponto de referência está fora? me perguntei.

Conclui que não é possível, a não ser que me movimente em função desse eixo me tornando dependente dele, ou então me desequilibre, como estava acontecendo.

Segui caminhando, inspirando, expirando, me perguntando a serviço de que projetei esse eixo para fora de mim. E ao mesmo tempo fui permitindo que esse eixo voltasse para o meu próprio centro.

E nesse processo me dei conta que muitas vezes coloquei esse eixo fora por amor; por amar tanto, que o sujeito amado, seja ele uma flor, um animal, um mestre, um amigo ou um companheiro, se torna mais importante do que eu mesma, passando a servir como um espelho de tudo aquilo de melhor que há em mim e que agora desloquei de mim projetando nele.

Foi aí que me dei conta que desapegar, deixar ir quem amamos de dentro de nós é talvez um dos maiores atos de amor por nós mesmos e por quem amamos, e talvez só assim sejamos capazes de amar de verdade.

Entendi que se estamos 'apegados' a quem amamos, acabamos aprisionando a nós mesmos e ao sujeito amado a nossa própria concepção de amor, as nossas expectativas e projeções. Acabamos enxergando ao nosso próprio ideal de amor e a nós mesmos refletidos no outro, ao invés de enxergá-lo por quem realmente é.

Quando cheguei ao topo, cansada e feliz por ter entrado na profundidade de minha dor, entrei numa meditação de pura conexão com Deus e com a natureza ao meu redor, repondo minhas energias e me alimentando de luz, amor e gratidão para iniciar um novo ciclo de vida.

E assim como o sol foi se pondo, encerrando mais um dia, eu fui descendo a montanha, encerrando um ciclo de vida, deixando sair meus apegos, a dor, as inseguranças e o vazio que eles causaram, para assim como um novo dia que nasce, parir um novo ciclo de vida, criando espaço interno para que esse vazio seja preenchido por meu próprio amor e consciência.

Assim como Moisés, que levou quarenta anos para cruzar o deserto, mais que o tempo necessário para essa cruzada, mas o tempo justo que levou para que o povo escravo de Israel deixasse a escravidão para trás e encontrasse a verdadeira liberdade e a terra prometida dentro de si mesmos, antes que pudessem fundá-la fisicamente. Eu fui subindo o Monte Sinai, deixando ir velhos padrões limitadores e junto com eles a ilusão de que a terra prometida estava fora de mim, para que um novo ciclo de vida possa emergir permitindo que eu encontre a terra prometida dentro, e então possa materilizá-la fora.

Por isso reforço aqui que o sentido da vida é a jornada que percorremos e não o destino onde chegamos. Na jornada mora o agora, e no agora abrem-se infinitas possibilidades de escolhas a cada passo, é na jornada que escolhemos todos os dias que direção vamos seguir e como vamos seguir. E sigo com a pergunta: O que é que cada um de nós precisa deixar ir para encontrar a 'terra prometida' dentro de si para que possamos materializá-la fora de nós, num mundo justo, pacífico, amoroso e feliz?

Com amor,

Narjara

 

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Mais amor, por favor.

Meu coração transborda de tanto amor que mal consigo conter as lágrimas que escorrem pelo meu rosto. Algumas experiências fazem a vida valer a pena e hoje vivemos uma dessas experiências.

O Egito tem sido uma experiência tão contraditória, quanto o deserto do Sahara e o vale fértil do Nilo. Desde que chegamos aqui, há quase um mês, as emoções me levaram da raiva ao infinito amor, as vezes no mesmo dia, viajamos do mais remoto passado da humanidade até a contemporaneidade de nossos dias, do Cairo a península do Sinai, do Sahara ao delta do Nilo.

Mergulhamos profundamente na vida dos faraos pelos grandiosos templos e tumbas, vivemos a rotina do islã e entendemos mais seu significado e princípios, exploramos os bastidores da revolução política-social encontrando pessoas e sentindo a magia do movimento por trás das cenas, experimentamos as condições extremas do deserto, a abundância da vida navegando pelo Nilo e a incrível beleza do mar vermelho. Vivemos o pior do turismo e o mais extraordinário da hospitalidade egípcia.

A parte histórica do Egito é impressionante e de muito valor para a humanidade, mas isso foi o passado desse país e não o que ele é hoje. Infelizmente a maior parte das pessoas chega ao Egito, vê a parte histórica e vai embora, e assim não dá para experimentar o que o Egito realmente é. Talvez isso aconteça em parte porque muitas agências alarmam as pessoas com todos os 'perigos' que o Egito tem e recomendam que façam tudo com pacotes e guias. Isso também aconteceu com a gente, mas... resolvemos arriscar a fazer diferente e valeu muito a pena.

O que encontramos foi um país de pessoas alegres e hospitaleiras, que adoram receber turistas, e que estão lutando por um país democrático e um futuro melhor para seus filhos. Um povo que acredita e honra Alah acima de tudo, e por outro lado, que sobrevive, desde tempos remotos, de seu turismo e até por isso vem praticando a arte de enganar turistas há milênios.

Após a revolução, há mais de dois anos, a vida aqui não tem sido fácil, a luta pela democracia tem sido vitoriosa em alguns aspectos, mais ainda longe da glória. A maior parte dos egípcios tem sofrido mais do que prosperado e com a proximidade das eleições a tensão aumenta com a incerteza do futuro, um futuro que estão determinados a alcançar custe o que custar.

E por tudo isso, um país que recebia milhões de turistas todo ano, nesses últimos dois anos tem recebido bem poucos, e os poucos viajantes independentes acabam sofrendo o impacto da escassez, que tornou a sobrevivência de muitos que dependiam do turismo, bem mais desafiadora.

Conosco não foi diferente, sentimos esse impacto desde que chegamos, uma mistura de tristeza e compaixão pela situação, e por outro lado raiva pelas mentiras e explorações a que fomos submetidos. Todos ao nosso redor querem tirar algum proveito da nossa presença, seja vendendo coisas, serviços ou ganhando comissão por informações, fotos ou indicações, nos deixando numa corda bamba entre seguir abertos as pessoas e confiando, e fechar completamente, desconfiando de todos que se aproximam.

Já vivemos os dois extremos e agora estamos em busca da inocência sem ingenuidade, o caminho do meio, mas não tem sido fácil conviver com tantas máscaras e interesses que ferem meus princípios mais fundamentais.

E a contradição egípcia foi se acentuando a medida que mergulhamos mais profundamente na cultura, conhecendo pessoas especiais que nos acolheram genuinamente, mostrando o lado hospitaleiro dos egípcios e convivendo com o mundo do turismo.

Voltando para Luxor, estávamos nos preparando para partir e resolvemos enviar algumas coisas para o Brasil para esvaziar um pouco a mochila, mas no correio de Luxor nossa experiência foi igual a de uma loja de souvinir, uma fila de egípcios e nós fomos convidado a entrar, sentar e até chá nos ofereceram. Algo 'cheirava mal', perguntei o preço algumas vezes sem resposta, nos ajudaram a embalar todas as coisas, assim como fazem na loja quando perguntamos o preço de algo, o que faz parte da pressão final para a compra. E depois de tudo pronto nos disseram um preço três vezes maior do que nos tinham dito há dois dias.

Que triste que nem no correio podemos confiar nesse país, pensei, não surpresa, mas decepcionada, confesso. Ele negociou o preço com a gente, mas decidimos ir embora por princípio. Não contente, ele veio correndo atrás de nós para dizer que havia se enganado e o preço era outro, ainda menor, o real valor.

Com um sentimento de impotência, frustração e raiva, decidimos comer para esfriar a cabeça e pensar o que fazer, nesse momento pedi a Deus, com todo meu coração, que encontrássemos alguém em quem pudessemos confiar.

Não muito mais tarde recebemos uma mensagem de Hamedi, um rapaz de 20 anos que mora com sua amável família e trabalha vendendo livros dos templos no Vale dos reis, um dos lugares turísticos aqui de Luxor, onde o conhecemos há dois dias. Ele não pode terminar seus estudos de colégio, porque precisou trabalhar para ajudar sua família, conhecendo a dureza de uma vida pobre desde menino, e mesmo assim fez a escolha de permanecer com o coração puro, se destacando no cenário turístico egípcio por sua inocência, honestidade e bondade.

Quando o conhecemos em meio a muitos vendedores no Vale dos reis, mesmo não interessados em seus livros, ele se disponibilizou a nos ajudar a encontrar a trilha na montanha que procurávamos. Mas nós, calejados da malandragem egípcia, dissemos não a princípio. Olhando para trás, fico tão feliz em lembrar que vi algo diferente nele e nos abrimos para conhecê-lo. A forma como cuidou de nós para que não pegássemos o caminho errado, porque estava genuinamente querendo ajudar, sem aceitar nenhum dinheiro em troca, me tocou. Cena rara, pessoa rara.

Ele nos convidou para conhecer seu vilarejo e sua família e nós o convidamos para passear de Felucca no pôr-do-sol, um barco a vela usado aqui desde a época dos faraós, nós topamos e ele topou. :)

Num vilarejo pequenino e simples, com plantações de banana, manga e trigo, próximo de onde estamos hospedados, chegamos a uma casa simples de barro, decorada por dentro com tons delicados de rosa e fotos de paisagens. Ele nos apresenta sua amorosa e tímida mãe, Najad, sua encantadora irmã Hendi, que está terminando seus estudos em comércio e um de seus dois irmãos, que está acabando seu serviço no exército egípcio.

Apesar de não falarem quase inglês, conversamos por horas e eles abriram não só as portas de sua casa com toda alegria, amor e hospitalidade do mundo, mas também as portas de seus corações.

Compartilhamos fotos de família, conversamos sobre a vida, sobre o governo, sobre o Brasil e nossa viagem, numa conversa simples e gostosa, onde as palavras foram o menos importante. O amor e a alegria de estar juntos foi crescendo enquanto tomávamos chá, e quando íamos embora, ela nos preparou um jantar com todo cuidado e amor e me deu um abraço tão apertado que me fez derrubar lágrimas, lágrimas de amor.

No seio de sua família deixei um pedaço de meu coração, que ficou transbordando de amor e carinho por essa querida família que não só nutriu nossos corpos com seu alimento, mas principalmente nossa alma com seu amor. E nesse dia de contradições, as contradições do Egito, de novo me dei conta da beleza da inocência e da presença de Deus, que respondeu da maneira mais linda e inesperada ao meu chamado.

Conhecer essa família foi conhecer o verdadeiro Egito, aquele por trás de todas as máscaras que vimos e o mais precioso que levo daqui.

As contradições geram movimento, dão vida e significado aos opostos e assim aprendemos a valorizar tudo aquilo que vivemos. E o amor, ah, o amor, tudo supera, vence qualquer batalha e derrete a tudo que alcança, derreteu toda raiva que senti e fez tudo valer a pena.

Ele cada vez mais me parece a melhor e mais poderosa solução que para os problemas que enfrentamos no mundo, nos permite estar vulneráveis e fortes, nos permite tirar as máscaras e encontrar com nós mesmos e com os outros num lugar de verdade que transcende qualquer palavra, raça ou religião.

 

O que mais posso dizer?

Mais amor, por favor.

Narjara

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Para Inglês Ver

Mais uma viagem de ônibus. As longas viagens por algum motivo me levam para um espaço reflexivo, e as vezes a reflexão pede para ser escrita. Além do mais quero dar uma contribuição, uma pitadinha do meu tempero, em meio a enxurrada de inspiração da Narjara (um dia ela ainda vai escrever um livro). Dessa vez a paisagem é bastante diferente da ultima vez que escrevi. Começamos nos esgueirando por um labirinto de concreto, viadutos e prédios. Carros e pedestres em um balé frenético, em ruas engarrafadas em meio a uma sinfonia de buzinas. Estamos saindo do Cairo, no Egito, a caminho de um oásis no deserto chamado Baharia.


 

Essa é uma região com uma rica tradição cultural e uma história milenar. O contraste entre o Egito e os outro países da Africa que passamos é forte. Claramente o país é mais desenvolvido economicamente, o Cairo uma metrópole cosmopolita e caótica. Um detalhe me chamou a atenção: na nossa jornada da Africa do Sul até o Egito, passando pelo Zimbabwe, Kenya e Tanzania, os únicos lugares onde vimos McDonald's foram justamente nesse dois extremos, em Johannesburg e no Cairo. Os M's amarelos formando um parênteses do mundo globalizado e americanizado, ao sul e ao norte, em torno de um "buraco negro" africano, ou um "Dark Star" como Paul Theroux chama essa terra perdida no excelente livro que estou lendo.

 

Para mim esse "buraco negro" é um grande exemplo de como o nosso atual modelo de desenvolvimento pode falhar. Um continente inteiro, o berço da humanidade, onde o ser humano viveu por milênios em culturas tribais em equilíbrio com o seu meio natural, foi forçado violentamente pelo expansionismo imperialista e colonialista a entrar na corrida maluca do jogo econômico. Claro, a vida tribal era dura, como pudemos experienciar algumas vezes na nossa jornada, mas certamente não se precisava discutir "sustentabilidade". Na primeira metade do século vinte o colonialismo até parecia um caminhos promissor. Mas assim que o movimento nacionalista foi levando os países africanos a independência, a partir da década de 60, o que se seguiu foi uma seqüência de catástrofes pelas quais a África ficou famosa. Alguém lembra da frase surreal que se repetia na mídia internacional, ao mostrar os sobreviventes da fome e dos genocídios: "e esses são os que tiveram sorte"?

 

Hoje nesse "buraco negro", no qual vivem quase um bilhão de pessoas, temos cidades inchando mais e mais, parecendo grandes favelas, em meio a áreas rurais, nas quais a natureza era exuberante, mas que agora não passam de grandes campos desmatados. As pessoas, com sua rica cultura tradicional fragmentada pelo colonialismo, muitas vezes vagam perdidas em busca de sentido, apesar de que algumas ainda expressam com orgulho a beleza das suas raízes. Ao percorrer essas paisagens, de vez enquanto encontramos os parques nacionais, pedaços de terra não muito grandes, cercados com seus leões e girafas, para que os turistas com suas bazuca fotográficas, possam ter uma "verdadeira experiência da África". As crianças descalças e empoiradas, correndo aos montes pelas vilas à beira da estrada são normalmente ignoradas. Bom, se isso não é um exemplo de falha de um modelo de desenvolvimento, não sei o que é. Onde mesmo queremos chegar com essa corrida maluca?

 

Devolta ao ônibus, a paisagem mudou bastante. Pela janela não vejo nada além de um mar alaranjado de areia até o horizonte. A mudança da selva de concreto para a o mar se areia foi gradual... Primeiro passamos por algumas plantações e coqueiros, ainda no vale do Nilo, em meio a casas e pequenos prédios. Depois a areia começa a aparecer, ainda com casas, muros e torres de alta tenção visíveis, até que finalmente o deserto se torna onipresente, cortado apenas pela faixa de asfalto que seguimos até o infinito.

 

Pegar esse ônibus também se mostrou um aprendizado interessante. Chegamos de manhã cedo na "Cairo Gateway Station", um moderno terminal de ônibus, bastante organizado, não muito diferente da rodoviária do Tietê em São Paulo. Incomparável com qualquer um dos pátios a céu aberto, cheios de lixo e vendedores ambulantes, que são as "rodoviárias" nas cidades africanas. Chegamos a nosso portão de embarque e entramos no ônibus relativamente novo, apesar de meio sujo. Estava surpreendentemente vazio. Além de nós havia mais três estrangeiras acompanhadas de uma guia, e apenas dois locais com roupa típica (bata longa e turbate). A Narjara até se perguntou como a companhia de ônibus não ficava no prejuízo assim.

 

O ônibus saiu da rodoviária e não demorou muito para termos a nossa resposta. Demos algumas voltas pelo transito anárquico - no Cairo, com seus 20 milhões de habitantes, não há semáforos nem faixas de pedestre. Logo o motorista manobrou em apertadas ruazinhas em baixo de um viaduto. Ao lado vimos um estacionamento de vans, e em meio a vendedores de rua e guiches em barraquinhas, com o viaduto como teto, estava a verdadeira rodoviária. Estacionamos em meio a bagunça, ao som de buzinas e pessoas gritando. Logo o ônibus estava cheio de Egipsios e seguimos novamente em direção ao deserto.

 


Depois de navegar por cinco horas no mar de areia, chegar no oásis foi um experiência curiosa. Claro que a imagem romântica que vemos nos filmes não é a realidade. Baharia é uma vale rochoso no meio do Sahara, que por ser mais baixo acumula a pouca água subterrânea que existe na região, nutrindo uma esparça vegetação, principalmente de coqueiros. A milênios seres humanos habitam esse lugar, e hoje quase 30 mil pessoas vivem aqui. A sua "capital", chamada Bawiti, é uma pequena vila rural, com casas de alvenaria simples, nada atraente. Após deixar as nossas mochilas na pousadinha, mais uma espelunca por 10 dólares, fomos correndo para nos refrescar em uma das famosas nascentes de águas termais. A nossa fantasia bucólica de cachoeiras e lagos verdejantes foi demolida por uma enorme bomba d'água roncando, cuspindo água por um grosso cano de metal. Surpresa! A mais de 10 anos a água rasa na região acabou, e o governo instalou antigas bombas de petróleo para puxar água a mais de 1000m de profundidade. Toda a agricultura e a vida no oásis hoje depende dessas engenhocas. Nunca tive uma visão tão clara da água como um recurso não renovável, mas conversando com os locais, ninguém parece se dar conta de que essa água "petrolífera" também irá acabar um dia... um oásis a menos na face da terra. Um curiosos microcosmo da situação global em que nos encontramos hoje.

 

Mas não consegui tirar a rodoviária sob o viaduto da cabeça. Fiquei refletindo para que serve então a chique e cara estação de ônibus nova? Apenas meia duzia de turistas pegou o ônibus lá! A famosa expressão brasileira "para inglês ver", ficou ainda mais clara para mim, com um sentido quase literal aqui. As pessoas locais me pareceram bastante satisfeitas com a rodoviária em baixo do viaduto, e o sistema parece funcionar bem. Mas o Egito sendo um pais bastante turístico, parece precisar de estação para os "inglêses". O mesmo acontece com os trens, que tem vagões especiais. Não que eu tenha algo contra a nova estação, mas esse fato curioso me fez divagar.

 

Isso me levou de volta a reflexão sobre o colonialismo, e mais ainda sobre processo que está por traz. Se olharmos um pouco mais fundo, além da visão simplista e dualista freqüente entre ativistas sociais menos informados, que enxerga os "imperialistas ocidentais do mal", vemos que em sua maioria os colonizadores acreditavam que estavam realmente fazendo o bem. Motivados pela moral cristã, estavam levando os avanços da civilização e salvando os selvagens das trevas. Realmente acredito que além dos interesses econômicos expancionistas, existia uma certa boa intensão por traz da colonização, e que a recente história da África não se fez apenas de perversa exploração. Mas como muitos dos nossos problemas hoje, o perigo esta na visão unilateral, onde os colonizadores europeus enxergavam apenas a sua realidade, que naturalmente viam como boa. Na falta de um diálogo verdadeiro, não conseguiam se colocar no sapato do outro. Não enxergavam qual era a realidade dos nativos, e o que eles viam como bom. Será mesmo que os africanos em suas tribos queriam deixar a sua vida de subsistência para ganhar dinheiro e pagar impostos? Alguém perguntou para eles?

 

Quanta energia investimos na corrida maluca do desenvolvimento econômico, apenas para inglês ver, sem significado real para quem está investindo? O que é realmente necessário para sermos felizes? Lembro dos muitos agricultores familiares e moradores de vilarejos que conhecemos em nossas andanças, que em sua simplicidade muitas vezes me pareceram mais felizes que os estressados urbanóides aprisionados na corrida maluca. Mas a pergunta que mais me persegue é: Quantas vezes estou eu no papel do "inglês", achando que tenho a solução e a resposta para os outros, e com a maior das boas intenções, quero impor a minha verdade sobre o mundo?!?

 

Thomas

9 de Maio de 2012

 

 

 

 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O movimento da vida

A vida surge do movimento do universo, assim como o movimento surge da vida, um não existe sem o outro

o movimento alimenta a vida e a vida nutre o movimento criando a si própria

o que é vivo está em constante movimento, por vezes invisíveis aos olhos, mas quando o movimento cessa, a vida se esvai, como a flor que murcha ou um corpo que morre

a água de um rio brota da nascente e segue para o mar, num constante movimento que oxigena e renova suas águas possibitando a vida, e quando a água pára, 'apodrece' e já não mais possível se faz a vida, assim é a nossa vida

a energia que flui pelo nosso corpo é como a água de um rio em constante movimento, quando nela surge um bloqueio, seja por uma emoção que não deixamos ir, ou um ressentimento que cultivamos, adoecemos do corpo ou da mente e um pouco de nossa vitalidade se esvai

assim como o rio, nossa vida vai fluindo do nascimento até sua dissolução no mar do universo

e no caminho vai tomando várias formas, diferentes cores e assim se renova e evolui, mas nunca pára

e o que mantém o fluxo da vida em nossos corpos é o nosso espírito que se manifesta pelo coração

não o coração órgão físico, mas o coração sutil que como o físico bombeia sangue, esse bombeia o fluxo da vida animando nossos corpos pelo calor de seu amor manifesto

amor além do romântico, amor que verdadeiramente vê além de si, que é capaz de amar sem distinção, que tudo compreende sem julgar, que é capaz de enxergar os sinais mais sútis e manifestar a inteligência de nossa intuição quando silenciamos

o conhecimento via razão nos guia até certo ponto da evolução, mas a partir desse ponto só amor é capaz de alcançar conhecimento que a razão jamais compreenderá 

Narjara

 

Charles

Fomos visitar uma pequena cidade na Tanzania, chamada Karatu, próxima a caldeira de um lindo vulcão, chamado Ngorongoro, razão pela qual estávamos lá.

Logo ao chegar um pastor gentilmente nos acompanhou até o hotel nos mostando o lado gentil e acolhedor dessa pequena cidade, onde passamos vários dias em busca de um grupo que pudesse dividir os custos de um tour para o tal do vulcão.

Logo que chegamos, estávamos passeando pelas ruazinhas da deliciosa cidade, quando dois garotos nos param na rua para vender colares e pulseiras feitos por suas mães e avós, uma cena comum nessas regiões mais turísticas. Mas algo completamente inusitado nos surpreendeu, o Charles. Um garoto de aproximadamente 10 anos que além de carismático, falava inglês fluente, e quando ficou sabendo que éramos do Brasil começou a falar em espanhol fluente.

Numa região bastante pobre, onde as oportunidades são poucas e as condições da educação precárias, a inteligência e perspicácia desse menino realmente nos chamou atenção. A maioria dos meninos de sua idade também vendem colares e pulseiras para complementar a renda familiar, mas em sua maioria mal falam inglês e acabam apelando com algumas mentiras para sensibilizar os turistas e vender seus produtos. Arte que infelizmente acabam aprendendo desde cedo por necessidade.

Mas o Charles é diferente, ele se destaca em meio as outras crianças e na hora de vender, ele não apelou em nenhum momento, foi sincero e negociou. No fim acabamos comprando o colar, porque gostamos muito dele, mas combinamos que a partir daquele momento não seríamos mais clientes, mas sim amigos. Ele topou.

Charles, aprendeu inglês e espanhol fluentes, algumas palavras em italiano e alemão conversando com turistas. Ele está no colégio, mas disse que não aprende muito por lá, o que gosta mesmo é de jogar futebol e conhecer pessoas. Seu sonho é ser guia em safaris e com a grande facilidade em aprender idiomas e seu carisma, parece um futuro promissor.

No fim da tarde quando voltávamos da nossa caminhada pela cidade, Thomas dizia: "de repente poderíamos pedir ao Charles que nos ensine um pouco de Kiswahili (o idioma local)" e logo encontramos com ele de novo, fizemos a proposta e ele topou na hora.

Fomos para um gostoso café e lá começamos nossas aulas, enquanto nosso jovem professor tomava seu copo de leite morno, cena que se repetiu por todos os dias que estivemos por lá, um dia ensinávamos português e no outro aprendíamos Kiswahili, enquanto conversávamos sobre a vida.

Um dia Charles estava caminhando com a gente na rua e pediu para andar de mãos dadas comigo, todo mundo ficava olhando. Ele ele me disse que estava fazendo isso porque queria ser visto com uma mulher branca para ter a possibilidade de casar com uma, quando chegar sua hora.

Os dias passaram na pequena cidade de Karatu e mais nos enamorávamos de lá. Pessoas muito especiais nos mostraram a hospitalidade e a afetividade Tanzanianas, num dia fomos almoçar na casa da Winnie, a garçonete que nos atendia no café, no outro fomos fazer uma trilha pelas montanhas, organizada por uma generosa mulher que tem um hotel na cidade e uma organização para apoiar mulheres da região. E claro, as nossas aulas de Kiswahili nos finais de tarde.

Visitamos a caldeira do vulcão de Ngorongoro, que é um grande vale que fica no lugar do vulcão após o seu colapso. É um lugar maravilhoso, coberto por uma natureza exuberante. Nos deliciamos assistindo aos leões tomando sol e se escondendo embaixo dos carros de safari, completamente a vontade com a dezena de carros que os cercavam, testemunhamos um hipopótamo sair da água durante o dia, cena muito rara, observamos as hienas se alimentando no rio, os bufalos tomando sol com as '(wild beasts)' e terminamos nossa tarde visitando uma vila Massai, dançando com seus habitantes e ouvindo histórias de sua cultura e suas tradições.

No último dia resolvemos visitar a região mais ao norte, onde tem um projeto da igreja anglicana que o pastor Samuel, que conhecemos em nosso hotel, gentilmente nos convidou para conhecer. Além do projeto, fomos conhecer os 'bushman', nômades que vivem como a milenios atrás, em pequenos bandos sobrevivendo de caça e coleta. Mas o que parecia pura gentileza do pastor e seu filho, por nossa confiança e ingenuidade, foi no fim uma arapuca de turista que infelizmente tirou um pouco o encanto de nossa experiência.

Mas o melhor de tudo foi conhecer o Charles que apesar de muito cedo já precisar trabalhar para complementar o orçamento familiar, continua sonhando e aproveitando as oportunidades que a vida lhe dá chegar mais perto de seus sonhos. Mais do que Kiswahili, ele nos ensinou sobre a vida e sobre o poder de sonhar, e com seu carisma, sinceridade e curiosidade cativou nossos corações.

Obrigada querido Charles, que Deus sempre te abençoe com tudo aquilo que precisa para realizar seus sonhos e ser feliz.

Narjara

 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Caminhos da alma

Três meses de viagem e sinto dentro uma ansiedade brotando, ansiedade que brota das contradições entre a alma e o ego, dos diferentes tempos que vivo e dos conflitos entre deixar ir e as inseguranças do vazio

Observo emails, movimentos no facebook, vejo a vida acelerada ao meu redor... projetos, mudanças, conquistas, pessoas nascendo, pessoas queridas partindo... sou parte de tudo isso, me sinto ligada a tudo isso, ao mesmo tempo me sinto tão distante, como uma observadora da janela de um trem que passa seguindo em direção a um horizonte distante.

Parte de mim queria viver e compartilhar de tudo isso, e outra parte queria estar exatamente onde está, ah contradições da alma que as vezes não sabe escolher, tão contrataditório assim é o meu ser. A razão se preocupa com que pensam e esperam de mim, o que deveria estar fazendo para pertencer, a alma tranquiliza és parte de todos e todos são parte de ti, não há separação, confia em ti.

Estou vivendo um outro tempo num outro espaço da minha existência, um tempo devagar quase sem pressa do lado de fora, um tempo acelerado e intenso do lado de dentro, e como só existe um lado, o de dentro, ambos os tempos se misturam num tempo sem tempo, difícil de entender e mais ainda de explicar... alguns dias quase infinito e outros menos que um pestanejar.

E dentro de mim a batalha constante entre a alma e o ego para vencer as inseguranças de voltar para meu antigo mundo e não mais me encaixar no mar que navegava, a batalha para confiar em quem eu sou, nas escolhas que fiz, em minha refinada intuição, independente de reconhecimentos ou aceitações externas.

Muito mudou dentro de mim e talvez meu barco já não caiba nos mares que navegava mesmo, e por quais caminhos navegará?

Meu coração sabe o caminho, sabe como navegar novos mares, não dúvida nem teme. Ele é, confia, vive hoje e se nutre para alimentar a futura jornada. Meu ego teme, teme pelo barco que já não navega em mares conhecidos, teme que fique perdido no desconhecido e já não se encontre mais.

E eu, sigo navegando pelos mares desconhecidos pela razão, mas já muito conhecidos pela alma, trilhando os caminhos de significado e deixando para trás as bagagens que já não cabem no navio, me fortalecendo para desbravar as novas trilhas e enfrentar os possíveis dragões.

As vezes os caminhos da alma contradizem a lógica, contradizem as expectativas a nossa volta, mas como não se entregar para os caminhos da alma?

Com amor,

Narjara